domingo, 12 de maio de 2019

Morte Súbita


Em meados de dezembro do ano de 2012, despertei de um pesadelo incomensuravelmente nebuloso. Nesta dimensão em que me encontro após ter falecido, paira um constante silêncio. Aqui não há alegria, tampouco tristeza, a neutralidade é o plano de fundo desse devaneio macabro que parece não ter fim. Apenas sei que não estou bem. Sinto falta dos meus entes queridos, dos meus escritos. E pensar que um dia ousei dizer: hei de morrer se me privarem do ato de escrever. Agora, isolada num mundo no qual não sei cronometrar o tempo, existo em função dos poucos instantes em que consigo vislumbrar aqueles que já não posso mais tocar. Sabrina, uma morta que conheci ultimamente, me explicou que essas minhas aparições no mundo dos mortais se dão graças à minha constante presença em suas memórias. É gratificante saber que ainda não me tornei uma defunta deveras esquecida, mas, ainda assim, sinto-me infeliz ao pensar que, quando não mais houver o meu resquício em seus pensamentos, automaticamente sucumbirei ao silêncio eterno. 
Eu era uma jovem peculiar, assim diziam os meus amigos em todas as vezes que ousaram tentar me descrever. Caminhava, sempre que possível no cemitério São Lázaro, no Rio de Janeiro. Enquanto eu vagava entre os túmulos feito uma alma penada, os espíritos ali presos sussurravam desgraças belíssimas no ouvido do meu outro Eu obscuro. A maior parte dos meus escritos foram concebidos naquele solo acolhedor dos que já se foram. Não é de admirar que os meus familiares tenham decidido me enterrar neste lugar, afinal de contas, eu meio que já morava aqui em vida, logo seria mais que adequado retornar ao meu segundo lar tenebroso. 
Conheci John numa noite de lua cheia. Ele estava revestido de trevas, o negror de suas vestimentas atraindo não somente o meu olhar, mas também o dos demais universitários presentes naquele evento literário. O meu amado declamou o meu poema favorito: "O corvo", de Edgar Allan Poe, extremamente propício para o Halloween. Comemoramos aquela data nos seguintes anos de uma maneira especial: promovíamos um evento nesse local que você está pensando mesmo — sim, no tão idolatrado cemitério. 
Hoje, após cinco anos da ausência do meu corpo, ainda recebo daquele que amo flores brancas tingidas de preto. Eu sei que deveria desejar a sua felicidade ao lado de outro alguém, até porque já não habito o mesmo meio que ele, mas não consigo ignorar o que sinto. Algo me diz que ele precisa de mim da mesma maneira que eu necessito dele para não sucumbir ao vazio eterno. Decidi tentar me comunicar com ele hoje, pois, se o meu amor resistiu à morte, nossa conexão há de prevalecer mesmo que minha carne seja inexistente.
***
— John, vem para a cama. Que diabos você faz nessa escrivaninha todas as noites? 
— Se eu não escrever, Karen, hei de enlouquecer. 
— Você ainda pensa naquela sua noiva que faleceu? Como é possível, John?! Ela morreu há cinco anos, você precisa seguir em frente!
— Por favor, não me venha com seus sermões! Antes de namorarmos, eu a alertei sobre a minha situação emocional. Foi muito difícil para mim, tive que aprender a viver sem a mulher da minha vida, ela era tudo para mim. Fiquei sem chão quando a morte a tirou dos meus braços. O médico alegou ter sido um infarto, mas ela era uma moça tão jovem! 
— Chega, John! Cansei de ouvi-lo se declarar para outra! Como ousa continuar a escrever poemas para a Elisabeth, sendo que você tem a mim ao seu lado? Eu te amo, John! 
— Perdão, Karen, mas eu não consigo esquecê-la. Algo me impede de me entregar totalmente à nossa relação. 
Karen se levantou num rompante, pescou suas roupas no guarda-roupa e saiu porta afora. Segundos depois, voltou com os olhos marejados e jogou a aliança no noivo. 
— Não irei dividi-lo com uma defunta, John, não mais! 
Elisabeth, que sondava por ali naquele momento, sorriu ao presenciar o fim do noivado de John. Seguiu Karen até a varanda e lhe rogou uma praga. A mulher sentiu um arrepio percorrer o corpo, como se o próprio mal houvesse lhe tocado a alma, Mal sabia a pobre moça que sequer chegaria a vislumbrar a estrela da manhã no dia seguinte. 
John foi acometido por inúmeros pesadelos durante a noite. Elisabeth se deitou ao seu lado na cama de casal, ocupando o seu antigo lugar, vigiando o sono do amado de forma assustadora. Seus olhos, desprovidos de vida, não piscaram sequer uma vez. John sentiu frio a noite toda e, ao acordar, sentiu uma fadiga devoradora sugar-lhe as forças. Naquele dia, ele não foi trabalhar. Sentia-se inútil, sozinho e melancólico. Se antes a vida lhe parecia algo trivial, agora passara a ter certeza de que já não suportaria existir por mais um dia. Vasculhou a casa inteira à procura de algum medicamento que, tomado em quantidade demasiada, resultasse no fim daquele inferno terrestre. Elisabeth, ao compreender a intenção do amante, tentou chamar a sua atenção, queria fazê-lo enxergar que havia uma luz no fim do túnel. Ela seria a sua luz.
Após uma longa busca na casa inteira, John se pôs a chorar desesperadamente. Ele ansiava por paz, já não se importava com o sonho de se tornar um poeta renomado. Àquela altura do campeonato, seus sonhos haviam se tornado utópicos, totalmente infrutíferos, devaneios de um homem infeliz. Elisabeth, desesperada, tentou tocá-lo. John sentiu seus pelos eriçarem, um frio glacial tomou conta do recinto. 
— Lis? — chamou John, com urgência na voz. 
— Por favor, Lis, se você está aqui, dê-me um sinal, não me deixe nutrir esperanças, me ajude a dar cabo dessa existência insalubre. 
Ao ver o desalento do amado, Elisabeth decidiu ajudá-lo. Procurou na estante um livro que ela havia dado a ele um mês antes de falecer, Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos. Ao encontrá-lo, o espírito absorveu energia do ambiente e tentou retirar o objeto. Depois de uns instantes de total concentração, conseguiu fazer com que o livro caísse no chão. Quando John escutou o barulho vindo do seu quarto de leitura, saiu em disparada. Ao adentrar o local, John vislumbrou o livro no chão. Caminhando vagarosamente, se abaixou e o tomou para si. Com um sorriso alucinado nos lábios, disse: 
— Ah, Lis, tu bem sabes que a dor ocasionada pela tua ausência acabará me privando da vida. 
Elisabeth se regozijou. Passar meia década no vale dos mortos fez com que sua humanidade apodrecesse, levando-a a induzir à morte o homem que ela dizia amar com tanto fervor. Enquanto isso, na TV, os jornais locais noticiavam um acidente que resultou na morte de uma jovem. O veículo da moça foi de encontro a uma árvore minutos depois de ela ter saído da casa do noivo, John Neves. Pessoas que passavam pelo local antes do acontecimento alegaram ter visto o carro desviar abruptamente, como se a motorista houvesse se deparado com um obstáculo inexistente. "Todas as testemunhas foram coerentes ao descreverem a cena e não houve contradição nos depoimentos", afirmou o delegado que acompanhava o caso. 
Na casa de John, o silêncio reinava. Enquanto ele escrevia seu último poema, Elisabeth o observava tal como um abutre a espreitar sua presa. Em vida, a moça amava o talento de John, sentia-se orgulhosa de poder chamá-lo de seu, tornando-se uma contista assídua após se envolver com alguém que tinha o mesmo hobby que ela. A escrita transformou-se em algo vital depois que ela conheceu uma inspiração que prometia se fazer presente em sua vida para toda a eternidade. Contudo, o destino foi cruel e lhe privou da felicidade que era tê-lo para si. John sofreu imensamente com a ausência de sua amada. Ela, por outro lado, nutriu sentimentos abomináveis, principalmente quando o amado conheceu outra mulher, o que enfureceu Elisabeth. Ela se tornou um espírito vingativo; precisava ver o amado infeliz, afinal, sentia-se vazia, abandonada naquela dimensão repleta de seres macabros. De tanto conviver com aquelas criaturas, ela acabou se convertendo em uma delas. 
— John?! 
Lá fora, uma voz gritava pelo suicida. Elisabeth, irada com a interrupção, disparou em direção à porta para confrontar o intruso. 
Do outro lado da porta, um velho conhecido de Karen chamava por John. Era o padre Joseph, aflito, pois conhecia bem o casal e receava que a infelicidade de Karen houvesse feito com que a mulher cometesse suicídio. Aquela hipótese não saía de sua cabeça, ele precisava ouvir uma explicação de John. Embora estivesse muito abalado, Joseph notou que havia algo de errado. Era um padre experiente e por isso cogitou a possibilidade de haver uma presença espiritual extremamente negativa naquela residência. Sem mais delongas, o homem abriu a porta. O recinto estava gélido, o que era bem incomum em uma casa sem condicionador de ar em pleno verão. A presença dele incomodou Elisabeth. O padre irradiava uma força que a reprimia, e ela não queria partir sem terminar o que começou. 
— John, você está bem? -— gritou o padre. 
John, não muito distante, com uma lâmina na mão direita, prestes a cortar o pulso esquerdo, assustou-se e deixou o objeto cortante cair, erguendo-se e andando em direção à voz que o chamava.
— Oi, padre Joseph, A Karen não está aqui comigo, caso o senhor não tenha percebido. 
— Como ousa falar desse jeito, John?! 
— Eu expliquei a ela minha condição e ela decidiu partir, padre. Eu faria o mesmo, caso estivesse no lugar dela.
— Você está me dizendo que ela bateu naquela árvore de propósito, John?
— Que árvore? Do que o senhor está falando? 
— Vai dizer que já se esqueceu da noiva que faleceu ontem? 
— A minha noiva faleceu há cinco anos, e não, nunca hei de esquecê-la.
— Você andou usando alguma erva, rapaz? Estou falando da Karen. Naquele instante, John sentiu um peso absurdo assolar sua consciência. Lágrimas brotaram dos seus olhos enquanto ele tentava processar aquela notícia terrível. Ele não a amava, porém nunca desejou o seu mal. Karen sempre foi uma excelente companheira, mas, infelizmente, cometeu um grande erro ao se apaixonar pelo homem errado.
— Perdão, padre. Eu não saí de casa desde que Karen foi embora. Meu Deus, ela se matou? Eu entendi direito? Isso não pode ser verdade, Karen é religiosa demais para cometer suicídio, o senhor bem sabe disso. 
—- Não se sabe ao certo se foi proposital, mas todas as testemunhas afirmaram que o carro de Karen desviou subitamente, como se houvesse um obstáculo a impedindo de passar; mas não havia nada, entendeu?
— Isso não faz o menor sentido. Karen jamais faria isso. Eu sei que ela estava magoada, mas em nenhum momento ela me deu algum indício de que se mataria. Será que... Não, estou imaginando coisas. Pobre Karen, não merecia esse fim. 
—- Você suspeita de alguma coisa, John? 
— Nada que possa ser comprovado, padre.
— Fale, John. Eu preciso compreender o que realmente aconteceu.
— O senhor acharia que estou louco, e não é para menos, mas...
— Fale! 
— Padre, se o senhor não houvesse aparecido, neste exato momento eu estaria morto. Lis esteve aqui, a minha Elisabeth. Fiquei aflito após ser abandonado por Karen, uma melancolia repentina me dominou e eu desejei morrer, padre. Clamei por Lis. No início, ela não se pronunciou, mas quando eu estava prestes a desistir do fim, ela me mostrou um livro, quer dizer, ela o fez despencar da estante. Eu entendi que ela desejava que eu sucumbisse ao vazio eterno, tal como ela o fez. Somente Elisabeth sabe que eu guardo lâminas na gaveta do armário, padre. Tenho certeza de que ela esteve aqui. 
— Você quer dizer que a finada Elisabeth pode ter alguma coisa a ver com o acidente?
— Eu não disse isso, padre, foi apenas algo sem nexo que passou pela minha cabeça. A Elisabeth era uma boa pessoa, ela nunca faria mal a Karen.
— Se realmente for verdade o que você me contou, tenho certeza de que ela teria coragem de matar Karen, John, pois até mesmo o homem que a ama ela queria destruir. Encare os fatos. Talvez ela não seja a mesma de antes.
— Padre...
Repentinamente, uma lâmina se chocou contra a clavícula do padre, que, aturdido, levou a mão ao ferimento. Não havia sido profundo, a lâmina não havia sido jogada com força o suficiente para causar danos maiores. John, ao ver o que o espírito de sua amada fora capaz de fazer, passou a duvidar das intenções de Lis. Ele foi até o padre para dar uma olhada no ferimento. Ambos ficaram em silêncio, alertas ao próximo passo do fantasma.
— Eu senti a presença dela quando cheguei à sua casa, John. Era uma energia negativa, havia um escudo de aura negra. Ela não queria que você sobrevivesse.
— Como ela pode ter se tornado tão má, padre? O que eu fiz para despertar a sua ira? Eu a amei em vida e após a sua morte fui leal à sua memória! Eu não compreendo...
— A essência dela pode ter sido corrompida, John. 
— Não sabemos o destino que seu espírito seguiu após o fim da vida terrestre. 
— Não consigo suportar a ideia de ela ter se transformado em algo maléfico. Desejo que ela tenha paz do outro lado. O senhor poderia orar por ela? Precisamos ajudá-la a encontrar a luz, senão ela poderá machucar outras pessoas ou até mesmo matar alguém. Pobre Karen... 
— Precisamos exorcizar o espírito dela, John, e, depois que ela se for, você precisará remover de sua mente a ideia de tê-la para si. Você precisa deixá-la ir, John. 
— Está bem, padre. 
O cômodo ficou ainda mais gélido. Elisabeth sentiu uma fúria imensurável ao ouvir o seu amado abrindo mão dela tão facilmente; ficou transtornada de ciúmes. Por conta da morte de Karen, John passou a ver Elisabeth como um monstro, e aquilo era inaceitável. Os objetos da sala começaram a flutuar. O padre deu início ao exorcismo, e John orava em silêncio, com os olhos fechados. Se Deus realmente existe, pensou ele, com certeza há de libertar a alma de Lis e guiá-la para a paz. 
Depois de longos dez minutos de oração, os objetos que antes flutuavam se espatifaram no chão. John sussurrou: "Vai em paz, Lis", e o padre Joseph finalizou o exorcismo com o sinal da cruz. Na mesma hora, o calor retornou à casa. A energia negativa havia se esvaído e John já não se sentia doente. Tudo parecia calmo e em seu devido lugar. Elisabeth havia partido, tudo iria entrar nos eixos, pensou o padre Joseph. 
John levou cerca de uma hora para arrumar a casa, que parecia ter sido virada do avesso. Exausto, deitou-se no sofá e logo pegou no sono. A princípio, a tranquilidade reinou. Ele sonhou com Karen - ela estava em um lugar bonito e parecia estar muito feliz. John foi ao seu encontro e a abraçou com força, sentindo um cheuro de rosas, mas nao eram quaisquer rosas; era o mesmo aroma das rosas que ele comprara para pôr no túmulo de Elisabeth. Assustado. John se desvencilhou de Karen e, desconfiado, analisou o lugar. Tudo parecia belo como no início. Ele olhou nos olhos de Karen e viu um ressentimento muito intenso neles... 
— Perdão, Karen, eu não soube dar valor a você, eu te fiz infeliz. 
Lágrimas jorraram dos olhos de John. Ele realmente estava arrependido de não ter se esforçado mais para fazer aquela moça que tanto lhe amou, feliz. Ele se aproximou novamente dela e sentiu vontade de beijá-la uma última vez, afinal, talvez fosse isso que ela desejara ao visitá-lo em sonho: se despedir. Quando John aproximou seus lábios dos dela, o rosto de Karen assumiu uma nova forma. Parecia o de Elisabeth, mas estava terrivelmente deformado. Ela agarrou-se ao corpo de John, o odor da putrefação impregnando o ar. Gargalhando insanamente, Elisabeth sussurrou no ouvido dele: "Vim buscar você, meu amado".

Jeane Tertuliano, no livro "Postumus - Relatos Sombrios". Org. Juliana Daglio. São Paulo: Rouxinol Editora, 2018.