segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Lapso

A véspera de Natal finalmente havia chegado àquela vila localizada entre as montanhas. Juntamente dela, uma nevasca achegou-se sorrateiramente durante a noite e assolou o lugar sem ao menos fornecer uma prévia de todo o isolamento que acometeria às famílias que ali residiam. Antes de a noite cair, Samantha esteve a observar o portão que pendia na entrada da rua sem saída, ela questionara diversas vezes sobre qual seria o presente que o Papai Noel traria para ela.
Ela também gostaria de saber quais presentes o bom velhinho levaria às outras dezenove casas. Ela sonhara com aquele momento, e como sonhara! Samantha sentiu-se feliz ao acordar.
Apesar de o senhor e a senhora Martins terem uma renda mensal humilde, eles haviam economizado durante meses para que seus filhos, Paul e Samantha, pudessem desfrutar de uma ceia decente, e, por sorte, sobrara uma pequena quantia para que as crianças se alegrassem ao avistarem os presentes que há anos pediam incessantemente ao pai e a mãe.
Paul era um garoto sapeca. Diferente da sua irmã, ele reclamava de tudo, nada era o bastante para deixá-lo contente. Sua mãe, Sara, sempre se perguntara de quem a criança herdara aquele gênio, pois Peter era um homem extremamente calmo, sequer se zangava quando Paul aprontava uma das suas traquinagens. Contudo, era véspera de Natal, a tempestade de neve havia alterado o humor de Paul a tal ponto que Samantha estava receosa de aquela mudança repentina ser fingimento do seu irmão.
Às vinte horas, a família se reuniu ao redor da mesa e contemplou a refeição por alguns segundos. Logo em seguida, Samantha se pronunciou alegremente, cantarolando:
─ Mamãe, mamãe, eu posso fazer uma oração para o Papai do céu antes de comermos?
─ Claro, meu amor ─ respondeu Sara, sorrindo.
─ Querido Deus, obrigada por essa ceia maravilhosa. Obrigada, também, por o Senhor me presentear com uma mamãe e um papai tão bondosos. Mesmo o meu irmãozinho sendo malvado a maior parte das vezes, eu também te agradeço por ele existir. Abençoe-nos sempre, Papai do céu. Amém ─ todos disseram em uníssono, exceto Paul, este a olhava de uma maneira sombria, o sorriso que anteriormente reinara em seus lábios, sumira completamente.
─ Eu posso ir ao banheiro, papai? ─ perguntou Paul, docemente, mas a amabilidade existente em sua voz não tocara os seus olhos negros como a escuridão que devorava a noite lá fora.
Enquanto os demais membros da família ceavam, Paul fora cautelosamente até a sala e se ajoelhara defronte a árvore de Natal. Mas ele não olhava em sua direção, aqueles olhos sorriam para uma sombra que pairava próxima à árvore.
─ Olá, Paul ─ falou o vulto sem forma.
─ Olá.
─ Você não está sentindo fome, criança?
─ Eu não quero comer com eles! ─ a voz do Paul soou áspera no recinto.
─ Eles?
─ Sim, os meus pais e a minha irmã chata.
─ O que há de errado com eles?
─ Eles, os meus pais, não me deixam brincar com os meus amigos e a minha irmã é uma sonsa, é a filha preferida deles, eu a odeio!
─ Realmente, pequeno Paul, você merece pais melhores e um irmão para lhe fazer companhia. Essa garota, a Samantha, te odeia, sabia?
─ Como você sabe que ela me odeia?
─ Ah, é que as pessoas, no geral, tendem a me confidenciar os seus segredos mais singelos, é espontâneo, elas o fazem sem perceber.
─ Eu pensei que a Sam gostasse de mim...
─ Esqueça isso, Paul, vá cear com eles, apenas vá! ─ Ordenou o ser, e Paul, feito uma ovelha submissa, obedeceu ao seu pastor.
Ao voltar à mesa, se alimentou e tratou os demais ali presentes docilmente. Após comerem, se reuniram na pequena sala. Samantha saltitou ao desembrulhar o seu presente e encontrar uma boneca muito, muito bonita, o brinquedo era deveras similar a ela, possuía longos cabelos castanhos escuros e sua pele era alva como a neve que revestia a rua lá fora.
Sara se emocionou ao receber um abraço cheio de afeto da sua amada filha, e Paul, apesar de gostar do enorme carro vermelho, apenas olhou para Peter e lhe agradeceu com um meio sorriso.
Durante a madrugada, afora Paul, todos já estavam em suas camas. O garoto estivera a observar a irmã enquanto ela dormia. A sua vigília durou aproximadamente uma hora, e consigo encontrava-se a sombra, ela estava a lhe sussurrar o que Paul deveria fazer para que pudesse obter a família que há tempos ansiara. Sem mais delongas, a criança rumou à cozinha e pegou uma grande faca que Sara costumava esconder em um compartimento do armário que possuía um fundo falso.
─ Agora, criança, você já sabe o que fazer. Logo terás a família dos seus sonhos ─ soprou a criatura vil.
Mecanicamente, Paul seguiu para o quarto dos seus pais e empurrou a porta que se abriu lenta e pesadamente. Sem hesitar, o garoto subiu na cama e sentou em cima do seu pai.
Peter acordou sobressaltado e quando estava prestes a perguntar o que Paul estava fazendo ali, ele esfaqueou o seu peitoral inúmeras vezes. Em poucos segundos, Peter sufocou com a enorme quantidade de sangue que esguichava das feridas. Quando o corpo de Peter ficou imóvel, o garoto engatinhou até a sua mãe, Sara abriu os olhos, exasperada, saiu da cama e acendeu o abajur que ficava ao lado da cama. Quando avistou a cena horripilante, tapou a boca com as mãos, depois olhou para o filho e gritou insanamente:
─ Assassino! Assassino! Assassino! ─ Ao ouvir os gritos da mãe, Samantha correu e se deparou com o assassinato.
─ Paul, você matou o papai! ─ Berrou a garota com lágrimas jorrando dos seus olhos.
Repentinamente, a consciência do que se passara ali beijou a face anteriormente lívida do menino. E ao ver o que havia feito, olhou para o demônio sorridente no canto da porta e sussurrou como que para si mesmo: acabou. Nesse momento, Paul virou a faca para o próprio coração e enfiou a faca sentindo a vida esvair do seu corpo.
Gritos agonizantes ecoaram das bocas de Samantha e Sara.
E o demônio? Ah! Ele partira a gargalhar pela noite afora.

Jeane Tertuliano, no livro "Contos de um Natal sem Luz - Volume IV". Org. Rô Mierling. Torres: Editora Illuminare, 2017.